Arquivo do mês: setembro 2023

Vaélico, Semana 6: Panteão

Como citamos anteriormente, Vaélico é um deus que era cultuado pelo povo dos Vetões, que viviam nas terras que correspondem à atual fronteira nordeste e leste de Portugal, adentrando o território da Espanha. No passado, suas fronteiras eram com as terras dos Lusitanos, dos Astures e dos Galaicos. Por isso é normal que o culto de algumas dessas deidades fossem partilhados entre esses povos, principalmente nas regiões de fronteira, uma vez que eles interagiam constantemente entre si. O panteão vetão, especialmente, se confundia algumas vezes com o panteão lusitano, graças à proximidade e alianças constantes entre tais povos. 

Como todos já devem ter percebido, é difícil conhecer o panteão vetão na sua totalidade. São deidades que conhecemos principalmente pelas inscrições posteriores ao período romano, encontradas nos territórios habitados por esse povo. Muitas das deidades surgem em registros de outras regiões, particularmente em território lusitano, mas por vezes também em território galaico e ásture. E todas elas sofrem com a mesma ausência de mitos registrados, bem como informações diretas de seu culto. Em todos os casos, temos de nos ater à sua iconografia, à etimologia dos seus teónimos, seus epítetos, aos ex-votos feitos em sua honra, ao que era pedido a elas, às comparações feitas pelos romanos. É fato que dificilmente conheceremos esse panteão antigo na sua totalidade, mas ao menos é possível reconhecer algumas das deidades que dele faziam parte:

Arentio e Arentia: uma deidade em que há uma dúvida sobre se estamos falando de uma entidade masculina, feminina ou de um casal divino. Seu culto se concentra em território lusitano, mas se estende também às terras vetãs. Associados principalmente a cursos d’água, saúde e prosperidade. 

Ataegina: deusa cultuada principalmente em território lusitano, mas também vetão. Deusa do renascimento, provavelmente de caráter primaveril. Sincretizada com Prosérpina, alguns a associam a um deus do Submundo, o que fez surgir a sugestão de que ela formava um casal divino junto a Endovélico.

Bandus: deus guerreiro conhecido principalmente na região do rio Ulla, mas cultuado em território vetão, lusitano e galaico. Associado não apenas à guerra e aos guerreiros, mas muitas vezes visto como um deus guardião dos juramentos e acordos sociais, além de um protetor das comunidades.

Ilurbeda: deusa vetã, associada principalmente à mineração e à prosperidade que surge do interior da terra. Talvez graças a isso ela possa ser também considerada uma deidade ctônica, e possivelmente também ligada aos ofícios em geral. Além disso, é uma deidade ligada aos caminhos e estradas, e talvez uma guia entre os mundos.

Laribus: não é uma deidade em si, mas um conjunto de deuses e espíritos protetores dos lares. Provavelmente teriam um nome nativo antes da assimilação romana.

Nábia: deusa cultuada principalmente no território galaico, mas também no lusitano e parte do vetão. Deusa da Soberania, associada com a primavera e a pulsão da vida, ligada a todos os Três Reinos, mas particularmente aos cursos d’água. Ela é uma guardiã dos Castros (comunidades típicas dos povos galaicos, normalmente localizadas em pontos elevados, como colinas e montanhas) e foi sincretizada com Diana pelos romanos, além de ser um psicopompo, uma deidade que faz a passagem entre os mundos. 

Netoni: possivelmente um equivalente do oeste ibérico para o deus Neton, que foi equiparado tanto com Marte quanto com Apolo, sendo que o cronista Macrobius atesta o seu caráter solar. Seu nome significa “guerreiro” e “campeão”, o que confirma seu provável aspecto de deus da guerra. Equiparado por alguns ao irlandês Neit. Cultuado entre Vetôes, Lusitanos e mesmo entre povos ibéricos de origem não-céltica.

Reue: deus celeste associado aos relâmpagos e tempestades, considerado um dos deuses altíssimos entre os Galaicos, mas cultuado também em território lusitano, particularmente no leste, onde estava a fronteira com os Vetões (por isso foi aqui incluído). Reconhecido também sob o nome de Larouco, muitos o associam à figura ibérica do Nubeiro, fazendo dele uma das deidades cujo culto era tão presente que permaneceu vivo no folclore, mesmo após a cristianização.

Trebaruna: deusa cultuada em território lusitano e vetão. Seu nome significa “Segredo da Casa” e “Mistério da Casa” e ela é associada à proteção do lar, da família, mas também à magia e aos mistérios. Também uma deusa do fogo doméstico e dos cursos d’água.

Estas obviamente não são as únicas deidades cultuadas em solo vetão. Há muitas outras sobre as quais sabemos muito pouco além de seus nomes registrados em aras votivas. Aerbino, Aiioadcino, Asitrita, Loemina, Moricilo, Siluano e muitos outros deuses entram nessa categoria.Talvez seja possível intuir algo sobre seu caráter a partir dos seus teónimos e do que foi descoberto sobre seus elementos de culto, mas poucos foram os que se aprofundaram o bastante no caso de tais divindades. E este também não é o nosso objetivo aqui. Aqui vocês já tem uma introdução sobre os deuses cultuados pelos povos vetões (e lusitanos e galaicos). Creio ser o suficiente por enquanto.

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30 Semanas Para Manannán

Foi no cada vez mais longínquo ano de 2014 que Endovelicon nos apresentou o seu trabalho com as 30 Semanas Para Endovélico. Assim como ocorreu com os 30 Dias Druídicos (prática também introduzida no Brasil pelo mesmo Endovelicon), eu resolvi segui-lo nesse processo, pois ele permite um aprofundamento das nossas percepções pessoais sobre as deidades as quais cultuamos. A ideia é que cada pessoa realize essas 30 Semanas Devocionais tendo como foco uma divindade com a qual sinta mais afinidade. Minhas 30 Semanas seriam voltadas para uma deidade do que me aproximei ainda no início da minha caminhada no Druidismo: Manannán mac Leir, o deus do mar e psicopompo por excelência da tradição gaélica.

Mas eu não consegui. E não foi por falta de informação. Diferente do trabalho que eu (e tantos outros) tenho feito com Vaélico, que é muito dedutivo e interpretativo, bem como dependente da Inspiração, há uma grande quantidade de mitos e conhecimentos sobre Manannán. A questão era de ordem mais pessoal. Em 2014 eu estava passando por um momento complicado na minha relação com a espiritualidade. Eu precisei tirar um tempo para reencontrar o Druidismo dentro de mim, o que exigiu que eu encerrasse muitos trabalhos que havia iniciado até então. Eu precisava recomeçar e meu trabalho com as 30 Semanas Devocionais para Manannán não se encaixavam naquele recomeço, então eu simplesmente as apaguei. Simples assim.

Os anos se passaram e muita coisa mudou desde então. E após muito meditar, cheguei à conclusão que daria uma nova chance às 30 Semanas Devocionais. Só que não o faria com foco em Manannán, mas em uma deidade muito menos conhecida, mas que tem atraído a atenção de muitos interessados em tempos recentes, particularmente no Brasil. As 30 Semanas Para Vaélico vocês já podem acompanhar neste mesmíssimo blog, um espaço dedicado ao deus-lobo dos Vetões onde tento trazer ao conhecimento de todos as minhas inspirações sobre uma deidade que parece quase desconhecida fora dos círculos de pessoas interessadas nos deuses da Ibéria céltica, mas que inegavelmente captura a atençãos daqueles que buscam se aproximar dele.

Mas havia algo inacabado. Algo que não parecia certo. Na minha cabeça eu sentia que havia abandonado algo importante e que precisava ser retomado, como as ondas do mar que vêm e vão. Não era justo simplesmente deixar as 30 Semanas para Manannán de lado, uma vez que havia sido Ele a me guiar através desse desafio tantos anos atrás. Não, é o momento de retomar esse caminho. Boa parte dele já está pronto mesmo, é apenas uma questão de disponibilizá-lo novamente. As semanas devocionais a Manannán e Vaélico ocorrerão simultâneamente, mas uma não deve atrapalhar a outra. Serão trabalhos simultâneos, mas também distintos. Vamos ver até onde esse caminho vai levar.

E para não dizer que não gosto de desafios, haverá uma terceira deidade a receber 30 semanas devocionais por minhas mãos. Alguém consegue imaginar qual é?

1) Introdução
2) Primeiro Contato
3) Símbolos e Imagens
4) Mitos
5) Família
6) Panteão
7) Nomes e Epítetos
8) Aspectos e Variações
9) Concepções Errôneas
10) Oferendas
11) Festivais, Dias Santos, Épocas
12) Locais de Culto
13) Relevância Atual
14) Culto Moderno
15) Aspectos Mundanos
16) Valores do Panteão
17) Relações com Outros Panteões
18) Gênero e Sexualidade
19) Qualidades
20) Arte Evocativa
21) Música Evocativa
22) Texto Evocativo
23) Literatura Evocativa
24) Testemunho Positivo
25) Testemunho Negativo
26) Relacionamento
27) Enganos
28) Desconhecimento
29) Experiência Pessoal
30) Conselhos

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Vaélico, Semana 5: Família

Este é mais um tópico controverso sobre Vaélico, uma vez que sequer temos informações sobre Ele sendo associado a alguma outra deidade na antiguidade ou em mitos posteriores. Suas inscrições se referem apenas a Ele, sem citar quaisquer outras divindades, mesmo sob a Interpretatio Romana. Ou seja, não temos sequer um ponto de comparação para tentar deduzir as relações familiares do deus-lobo. Portanto, tudo o que estou postando aqui (e a maior parte do que estou trazendo nos outros textos dessa série) pode ser considerado como uma Gnose Pessoal, ou UPG, como chamam os Reconstrucionistas Celtas.

Como citamos anteriormente, é comum que seja feita uma associação entre Vaélico e Endovélico, principalmente pela similaridade entre os nomes, mas também pela relação próxima dos Vetões para com os Lusitanos. Contudo, apesar de possuírem semelhanças inegáveis (como o fato de serem psicopompos e ligados ao Outro Mundo), há também grandes diferenças entre eles (Vaélico é ligado aos lobos, Endovélico aos javalis; o deus lusitano tem afinidades com a cura e a profecia, o deus vetão não parece carregar tais atributos; Endovélico é sincretizado pelos romanos com Asclépio, não há Interpretatio disponível para Deo Vaelico). Mas caso essa relação exista (e ela é apresentada aqui apenas como possibilidade), é comum interpretar que Endovélico teria como consorte Ataegina/Atégina/Ataecina, “a Renascida”, uma deidade que os romanos sincretizaram com Prosérpina (é um tema comum nas mitologias indo-européias a união de uma deusa primaveril com um deus do Submundo, tais como Hades e Perséfone, Prosérpina e Dispater, Gwynn ap Nudd e Creyddlad).

Outra associação feita a Vaélico, embora menos comum, é com o deus galo-britânico Sucellus. O seu nome significa “o Bom Golpeador” e sua associação a Vaélico parece ser feita principalmente pelo fato de ele ser representado uma pele de lobo em suas costas, além de também ter um caráter guerreiro presente. Além disso, Sucellus é sincretizado pelos romanos com Silvanus em algumas inscrições, o que sugere que uma deidade associada à vida selvagem. Não são elementos fortes o bastante para tornar essa associação mais do que tênue, mas caso ela realmente exista, o deus galo-britânico carrega também afinidades com a agricultura e com a produção de bebidas (estas desconhecidas quanto a Vaélico). Ainda assim, se houver razão nesta comparação, Sucellus tem como consorte Nantosuelta, uma deusa associada principalmente à fartura, ao lar e aos cursos d’água.

Não há uma deusa representada ao lado de Deo Vaelico, nem mesmo apenas com o teónimo, por isso qualquer associação desse tipo é apenas interpretativa. Contudo, é fato que Ilurbeda, deusa vetã dos caminhos e da mineração, foi cultuada em regiões próximas às de Vaélico, e que possuía ao menos um aspecto de afinidade semelhante a ele (o de padroeira da mineração). Podemos dizer que ela teria sido sua consorte, ou ao menos aparentada a ele? Não, não podemos intuir isso com tamanha ausência de informações, mas é uma possibilidade que permanece aberta, ao menos por terem sido originalmente cultuados pela mesma população em regiões em comum, o que pode ao menos sugerir que seus mitos originais poderiam se interligar em algum momento.

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Vaélico, Semana 4: Mitos

Como ocorre com a grande maioria das deidades ibéricas, não temos mitos conhecidos sobre Vaélico. Não quer dizer que eles não existiram no passado, apenas que não foram registrados para a posteridade, fosse pelos nativos vetões, fosse pelos colonos gregos ou invasores romanos. Alguns mitos ibéricos até foram compilados durante a conversão ao cristianismo, tais como o da Rainha Lupina (cujo próprio nome já reforça a ligação das tradições locais com os lobos), enquanto outros surgem no folclore posterior do noroeste da península, tais como o Nubeiro (que é muitas vezes associado ao deus Reve Larouco), as Moiras e Trasgos. Mas para a grande maioria das deidades locais não temos mitos registrados, sejam anteriores ou posteriores à cristianização.

Em alguns casos, contudo, certos mitos podem ser “interpretados” a partir das comparações feitas pelos romanos com suas próprias deidades, dos resquícios de iconografia e ex-votos descobertos, do estudo dos teónimos e epítetos da entidade, de possíveis resquícios presentes no folclore, de fragmentos de informação histórica. Obviamente não temos como afirmar que tais mitos reconstruídos são completamente fiéis à mitologia antiga e perdida de tais deidades, mas podem nos dar alguma ideia sobre como elas eram vistas pelos seus povos. Além disso, podem ser vistas como uma prática de Mitopoese, que não corresponde aos mitos antigos, mas que ajuda os devotos atuais a interiorizar as características das deidades. Não é essa, afinal, uma das funções dos mitos? (obviamente, desde que reconhecidas como inspirações contemporâneas, nunca é demais repetir)

Há muitas lendas sobre seres lupinos dentro da cultura ibérica, inclusive de entidades encantadas (como lobisomens e peeiras), mas é difícil dizer se alguma delas é diretamente associada a Vaélico. Contudo se nos debruçarmos sobre o simbolismo do lobo nas antigas tradições ibéricas e europeias, talvez consigamos um vislumbre do tipo de mito que poderia ser associado à Sua figura no passado. 

Uma crença que tem ganhado aderentes (mas que pode ser controversa para alguns) é a de que Vaélico teria relação com as sociedades guerreiras ibéricas, particularmente vetãs. É fato conhecido que a existência de confrarias guerreiras era comum entre as populações do oeste ibérico. Grupos que viviam à margem da sociedade, seguindo suas próprias leis e ritos iniciáticos, talvez como os Fianna irlandeses.Tais sociedades existiam  entre os Vetões, Galaicos e Lusitanos. É dito em certos relatos romanos que os guerreiros ibéricos cercavam os acampamentos dos invasores durante a noite, uivando e aterrorizando seus inimigos. Isso fez com que fosse teorizado que as confrarias vetãs, mas talvez também as lusitanas e galaicas, fossem formadas por homens que “assumiam a pele do lobo”, incorporando sua coragem, fúria e astúcia, e que Vaélico poderia ser o seu patrono. Os estudos arqueológicos dentro do território ibérico mostram a importância do lobo para as sociedades locais, com suas fíbulas e trombetas, e guerreiros vestindo peles de lobo são retratados na cerâmica ibérica, o que reforça ainda mais essa ideia.

Lobos costumam ser associados ao inverno, à escuridão e à morte, não apenas na Ibéria, mas em toda a Europa. Na Escócia o período que corresponde ao mês de janeiro era chamado de An Faolach, “o Mês do Lobo”, nas regiões das Hébridas e Terras Altas. Muitas tradições europeias associam o lobo com o inverno, quando tais animais são mais perigosos. Além disso, são animais noturnos e que se beneficiam da escuridão. Uma moeda encontrada na região de Calvados, que data dos séculos II a III a.C., mostra um lobo prestes a se alimentar da lua (muito antes das Eddas descreverem Mánagarmr fazendo isso no Ragnarok). Assim, se Vaélico é um deus-lobo, é natural pensar que ele se beneficia da escuridão da noite e que a época mais associada a ele fosse o inverno. É dito que os guerreiros lusitanos se vestiam com cores escuras. Se o mesmo ocorria com as confrarias vetãs, é possível que isso fosse visto como uma forma de simbolizar essa ligação com a escuridão e “vestir a pele” da sua deidade patrona.

Em uma peça de cerâmica ibérica encontrada em Alicante, encontramos uma interessante imagem que mostra um jovem guerreiro com sua lâmina perante a ameaçadora figura de um lobo. Ralph Haussler sugere que ali não estamos diante de uma luta, mas de um processo iniciático que busca transformar o jovem em um guerreiro perfeito, que domina as forças instintivas da natureza. “O lobo é seu guia, tanto na vida quanto no pós-vida”, sugere o estudioso. A bênção do lobo é o rito de passagem (talvez ligado à chegada da vida adulta). Caso a associação esteja correta, não é difícil fazer uma ligação com o que sabemos sobre as confrarias guerreiras do oeste ibérico, bem como imaginar uma participação de Vaélico ali, ao menos no território vetão. Mais do que isso, lobos são animais coletivos, vivendo em matilhas, algo que também pode refletir no comportamento dos bandos guerreiros itinerantes, que inclusive poderiam se ver como “matilhas”.

Já a Fíbula de Bragança, um artefato de possível origem celtíbera, pode trazer uma representação do cosmos mítico ibérico (de acordo com algumas interpretações). Essa peça profundamente detalhada mostra ao seu centro um guerreiro ibérico nu, mas equipado com elmo, espada e escudo. À sua frente é possível ver um lobo de duas cabeças, atacando-o com uma delas enquanto a outra se volta para o outro lado, onde a fíbula continua até se encerrar em uma cabeça de javali. Após a cabeça de javali, surge uma serpente ou dragão de duas cabeças adornado com ondas, que se posta atrás do guerreiro, fechando a jóia. Alguns estudiosos sugerem que o objeto poderia representar um ciclo de vida, morte e renascimento, tal como uma das cenas representadas em uma das chapas do Caldeirão de Gundestrup.

Longe de dizer que todos estes elementos estejam intrinsecamente ligados a Vaélico, uma vez que surgem de várias regiões diferentes da Ibéria, é possível imaginar que, se tal é o entendimento ibérico da figura do lobo, tal poderia ser também o entendimento do deus-lobo entre os Vetões. Encarar o lobo é enfrentar seus medos, sabendo que o perigo está à espreita na escuridão. Mas as confrarias guerreiras ibéricas não apenas enfrentavam o lobo ou seus temores, mas os abraçavam, incorporando suas características, sua fúria, astúcia e terror, transformando sua fraqueza em força e guiando seus instintos para a batalha. É verdade que, ao enfrentar o que se teme, você enfrenta o perigo. Mas ao enfrentar o perigo, você renasce. O lobo com as duas cabeças em posições opostas da Fíbula de Bragança sugere isso. Ser devorado e renascer no Outro Mundo (no reino do javali, talvez representando Endovélico), ou abraçar o lobo, assumir sua forma, e então andar pelos caminhos do Outro Mundo você mesmo. O lobo é o psicopompo que guia ao Outro Mundo os que correm como ele, ou que então os leva para o seu descanso final.

Desta forma é possível intuir um mito que poderia conduzir as confrarias guerreiras ibéricas, onde um herói fundador precisava enfrentar uma criatura lupina durante o inverno rigoroso (no caso, que representa seus medos) para atingir a maturidade e seu maior potencial como guerreiro. Ao enfrentar esse ser “monstruoso”, ele partiria em uma jornada ao Outro Mundo (talvez após ser simbolicamente “devorado” por ele), aprendendo seus segredos e assumindo sua forma (ou seja, tornando-se a sua fonte de medo), sendo guiado pelo lobo e retornando como um adulto, pleno de suas capacidades e capaz de “vestir a sua pele”, um licantropo, um guerreiro que se transforma incorporando suas características lupinas após participar da iniciação com Vaélico.

É possível dizer que este é um mito perdido da tradição ibérica, ou pelo menos vetã? Óbvio que não. Provavelmente não é nem mesmo algo parecido com os mitos que existiam sobre Vaélico no passado. Contudo ele ainda é uma interpretação (mesmo que atual) dos simbolismo que a sua figura enquanto deus-lobo poderiam carregar, e uma forma de tentar entender melhor o seu caráter enquanto deidade, aproveitando-se das associações presentes na tradição locais, mesmo que não exatamente da tradição vetã. Novamente, esta é uma das razões pelas quais os mitos existem, não?

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Vaélico, Semana 3: Símbolos e Imagens

Como já citado anteriormente, no caso das deidades célticas continentais é mais comum haver ausência de evidências textuais sobre o seu culto do que a fartura mitológica encontrada nas terras insulares. Contudo quando falamos sobre evidências materiais e iconografia, essa situação muitas vezes se inverte, com algumas deidades das regiões da Gália e da Ibéria tendo mais resquícios arqueológicos que sugerem como poderia ter sido a sua adoração do que encontramos em terras insulares. Mas mesmo tais resquícios são escassos no caso de Vaélico, e principalmente restritos às regiões habitadas pelo povo dos Vetões e suas cercânias (que incluem territórios dos Lusitanos, Celtíberos, Galaicos e Astures). Ainda assim, apesar das dificuldades, é possível perceber alguns elementos simbólicos que podem ser mais facilmente associados a essa deidade (mesmo que através de uma inspiração atual) e que podem nos guiar para um culto atual ao deus-lobo.

Não deve ser surpresa que o primeiro elemento a ser associado a Vaélico seja a figura do lobo. A interpretação mais comum é a de que o nome de Vaélico signifique “o Lupino” ou “o Ululante”, a partir do proto-céltico *wailos. Os lobos tem uma enorme relevância dentro das tradições ibéricas, sendo considerados animais-símbolo das confrarias guerreiras dos povos do noroeste da península (o que inclui os Vetões), que uivavam durante a noite para aterrorizar os acampamentos romanos. Os lobos, dentro de alguns ramos da tradição indo-europeia, são muitas vezes associados a guerreiros que assumem a sua fúria instintiva através de processos iniciáticos (como os Ulfhednar nórdicos), além de serem considerados animais psicopompos, isto é, ligados ao Outro Mundo e suas passagens (pois costumavam ser associados à morte pelos antigos). Vaélico é um deus com o nome associado ao lobo, de uma região conhecida por suas confrarias guerreiras que viviam à parte da sociedade (e que eram conhecidas por suas inspirações lupinas), e também conhecido como uma deidade com ligações com o Outro Mundo. Portanto não é impossível que tais elementos possam ter se relacionado a ele em algum momento.

Não se deve estranhar, portanto, que boa parte dos elementos simbólicos aqui escolhidos para serem associados a Vaélico tenham simbolismos lupinos. Tal é o caso da fíbula, uma peça metálica de joalheria usada por diversos povos para prender tecidos, como capas e mantos, ou simplesmente como broches que poderiam ser ricamente ornamentados. Na região da Ibéria há uma profusão de fíbulas encontradas com motivos lupinos, tal como a fascinante Fíbula de Bragança (foto acima), que podem ter pertencido a membros da nobreza ou a guerreiros célebres. Obviamente não estou afirmando que todas as fíbulas retratando lobos representam um culto a Vaélico, mas ilustrando a importância das figuras lupinas para as elites ibéricas (guerreiras ou não), bem como sugerindo um símbolo que poderia facilmente associado ao deus-lobo em um culto atual.

Existe a crença de que guerreiros das confrarias guerreiras do oeste ibérico também se vestiam com peles de lobo (como sugere a imagem acima, reproduzindo uma cena da Estela de Zurita). Essa prática parece encontrar eco em outras paragens célticas, uma vez que o deus gaulês Sucellus (comparado a Vaélico por alguns) também surge vestindo uma pele de lobo em suas representações. Portanto é possível que tais guerreiros não apenas uivassem, mas assumissem “a pele do lobo”, como uma forma de invocar a sua fúria, coragem e terror. “Assumir a pele” de um animal sagrado é comum em diversas sociedades animistas e muitas vezes é uma forma com a qual seus usuários (sejam guerreiros ou magos) incorporam suas características simbólicas e mágicas, bem como uma forma comum de realizar ritos extáticos ou jornadas em transe ao Outro Mundo. E Vaélico, com suas associações aos lobos e ao Outro Mundo, poderia ser aquele a abençoar e conceder a transformação aos que “trocavam” de pele e assumiam o papel lupino, bem como guiá-los em suas jornadas pelas paragens além do mundo físico.

A falcata (um tipo de espada ibérica semelhante à cópis grega) pode ser um símbolo interessante a ser relacionado a Vaélicom principalmente para aqueles que se focam na sua possível ligação com as confrarias guerreiras da península. Não seria estranho a um deus que poderia ser inspiração para comunidades de guerreiros que viviam sob suas próprias regras e praticando seus próprios ritos ter uma espada como símbolo, e das lâminas ibéricas, a falcata é certamente a mais conhecida e emblemática. Além disso, falcatas foram encontradas como objetos votivos no santuário de Vaélico em Postoloboso, sugerindo que a ideia de dedicar suas armas a Ele não é uma interpretação de todo moderna.

O escudo do tipo caetra (arredondado, menor do que outras variedades de escudo, mas ainda maior do que um broquel) é uma associação mais polêmica (mas é apenas minha inspiração pessoal, obviamente). É muito provável que os guerreiros das confrarias vetãs se utilizassem de escudos desse tipo, mas não é algo tão distintivo quanto a falcata, por exemplo. Porém, Sílio Itálico cita que os jovens pertencentes às confrarias guerreiras galaicas cantavam canções bárbaras em suas línguas nativas, acompanhando-as pelo bater de seus pés ou pelo soar de seus escudos. Obviamente não é uma tentativa de equiparar Galaicos e Vetões, embora fossem povos vizinhos (pesa também o fato de que os Galaicos serem muitas vezes confundidos ou associados com os Lusitanos, que eram firmes aliados dos Vetões), mas se Vaélico realmente teve alguma influência sobre as confrarias guerreiras vetãs, e elas realmente eram adeptas de ritos iniciáticos (como tantas outras no mundo antigo), não é uma sugestão absurda que elas honrassem suas deidades patronas com cânticos usando escudos como percussão. É óbvio que sei que esta é apenas uma associação baseada puramente em uma inspiração pessoal, surgida pela comparação entre dois povos geograficamente próximos (e que muito provavelmente interagiam entre si). Mas ainda assim não seria estranho ter o escudo como símbolo em um culto atual a Vaélico (bem como a qualquer outra deidade de características guerreiras).

A trombeta (ou carnyx, em gaulês) é mais um símbolo que trago para representar Vaélico. Não apenas pelo seu significado guerreiro (mas certamente por ele também), mas por ela ser uma forma usada por guerreiros para se comunicar a grandes distâncias, tais como o uivo dos lobos. Obviamente qualquer um pode argumentar que o som de uma trombeta nada tem a ver com o uivo de um lobo, mas o objeto acima (encontrado em Numância, Espanha) sugere que pelo menos alguns dos povos celtas da Ibéria também podem ter feito a mesma associação.

Pode parecer estranho associar cursos d’água, como rios e riachos, a uma deidade lupina como Vaélico. Porém um rio corre ao lado da Ermida de São Bernardo (em Ávila), um local que parece ter sido ponto de culto pré-cristão a Vaélico (pelas diversas inscrições em sua honra encontradas no local). A importância desse curso d’água tem gerado diversas interpretações entre os estudiosos, desde a mais simples de todas, que é a de que simplesmente era cômodo ter um riacho próximo ao lugar sagrado, até outras que envolvem as bênçãos de cura da divindade sobre as águas. Outra interpretação (que é a que me fez escolher os cursos d’água como símbolo) é o papel de Vaélico como psicopompo, um deus que leva ao Outro Mundo e cujas águas podem ser um dos caminhos por ele utilizados.

Por último, as ferramentas de mineração. Muitos antigos equipamentos de mineração foram encontrados nos locais de culto a Vaélico, o que sugere que os mineiros tinham estima por Ele. Não temos evidências o bastante para afirmar que Ele era um deus patrono dos mineiros ou da mineração (nem para negar isso também), mas o fato de que tais objetos tenham sido descobertos junto aos locais onde suas devoções eram depositadas mostra que tais trabalhadores creditavam ao deus-lobo alguma confiança. Uma interpretação sugere que eles homenageavam Vaélico não como deidade da mineração em si, mas por suas características de deidade do Submundo, de onde os mineiros tiravam as suas riquezas. Assim mantenho aqui as ferramentas de mineração como último símbolo a ser associado a Vaélico no seu culto.

Lembrando que essa listagem de símbolos é uma inspiração contemporânea, trazida por mim e apenas por mim. Por mais que eu utilize uma base nas informações que realmente dispomos sobre Vaélico, ela é combinada com uma boa dose de inspiração. Mais do que isso, ela não tem a intenção de ser um tratado acadêmico, mas sim um exemplo de como o culto de Vaélico poderia ter sido, seja no passado, seja no presente. 

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