Vaélico, Semana 8: Aspectos e Variações

Acho que não é preciso explicar novamente que nosso conhecimento sobre as deidades ibéricas se deve mais à iconografia, arqueologia, interpretação de seus teónimos e elementos de culto do que a uma mitologia preservada (como encontramos nas terras célticas insulares). Não é tão simples encontrar os principais aspectos e variações associados a Vaélico, mesmo porque ele não conta com uma Interpretatio tão ampla feita pelos romanos como suas próprias deidades. Além disso, há o próprio caráter enigmático de suas aras votivas, que não são tão óbvias quanto as de Endovélico, por exemplo. Mas mesmo através da interpretação do seu teónimo e de suas possíveis relações com elementos conhecidos da antiga cultura da Ibéria (e de outros povos celtas), é possível inferir alguns possíveis aspectos de Vaélico. 

O primeiro aspecto que examinaremos é aquele trazido pelo seu próprio nome. Vaélico é “o Lupino”, o deus-lobo dos antigos Vetões. Portanto, ele é associado com os lobos, mas não apenas isso. Não há, nas variações mais arcaicas das línguas célticas, uma diferença clara entre lobos e cães, o que pode torná-lo associado aos canídeos em geral. Mais do que isso, como um deus lobo, ele certamente tem ligações com aspectos ligados à vida selvagem e natureza, inclusive com o seu lado mais terrível (que muitas vezes são ignorados por nossas lentes modernas). A natureza é bela, é livre, é intensa, mas também carrega perigos e terrores (como bem sugere a ligação do fíd do Ogham h-Úath, que significa literalmente “terror”, e que tem entre os significados atribuídos a ele no Briatharogam “matilha de lobos”), além da inevitabilidade da morte. E o lobo é um dos animais mais associados à morte no folclore europeu. Assim, é possível ver Vaélico como uma deidade ligada à vida selvagem, inclusive ao seu aspecto perigoso, da caçada e da morte.

Isso nos leva, obviamente, ao segundo aspecto: o de psicopompo. Encontramos evidências em alguns ramos da tradição céltica de que certos animais carnívoros eram vistos como psicopompos. Na Irlanda, havia a tradição de que as batalhas ocorressem em dias alternados para que os corvos pudessem se alimentar dos mortos (talvez um reflexo da crença na deusa Morrighan). Na Ibéria, encontramos o relato romano que dizia que os corpos dos guerreiros caídos eram deixados no campo de batalha para que as aves carniceiras deles se alimentassem e os levassem ao paraíso. O lobo, especialmente, era visto como um ser que não pertencia totalmente a esse mundo, mas tendo um caráter quase sobrenatural, vindo dos limiares entre os mundos. Além disso, os relatos de guerreiros que vestiam as peles de lobos na Ibéria, Escandinávia e Leste Europeu como parte de processos iniciáticos e ritualísticos reforçam o seu caráter sobrenatural. Vaélico é um deus do Submundo, um deus noturno das fronteiras onde o mundo humano termina. Por isso, é natural que ele seja visto como um psicopompo, bem como um guia para aqueles que seguem os seus caminhos.

Essa ligação dos lobos com guerreiros do mundo antigo, da Ibéria até o Leste Europeu, passando pela Escandinávia, nos traz um terceiro aspecto de Vaélico: o de iniciador dos guerreiros. Mas não de simplesmente soldados, mas de grupos de guerreiros que “vestiam a pele do lobo”, encarnando sua ferocidade e terror, muitas vezes através de ritos iniciáticos e extáticos onde apenas os mais aptos passavam a ser escolhidos a andar com suas “matilhas”. Os Ulfhednar nórdicos, as descrições da Volsunga Saga, os guerreiros-lobos dos Balcãs e as confrarias ibéricas, que cercavam os romanos à noite e uivavam como lobos, todos pareciam partilhar dessa ligação lupina. Obviamente, não estamos sugerindo que todas as confrarias ibéricas eram formadas por devotos de Vaélico, mas não parece inapropriado sugerir que aquelas que passavam pelo território vetão tivessem alguma relação com uma deidade lupina.

Essa ligação com guerreiros que “vestem a pele do lobo”, que podem ter trazido à tona tantas lendas sobre lobisomens na Europa, nos sugere mais um aspecto que pode ser relacionado a Vaélico, o último que analisaremos aqui: o de ser uma deidade ligada à magia, particularmente a de transformação. Como citado, tais muitas vezes guerreiros não eram apenas soldados, mas um grupo seleto de homens que viviam sob suas próprias regras, praticando seus próprios ritos, como uma casta à parte da sociedade. Eles eram conhecidos por “incorporar” as características lupinas, viajando em bandos, vivendo com astúcia e ferocidade. Essa suposta ligação de Vaélico com a magia, portanto, não envolvia simplesmente a prática mágica no geral, mas especificamente a prática mágica do guerreiro, de “buscar a transformação” de si mesmo em lobo, para se tornar mais completo, como visto nas confrarias da Ibéria, da Escandinávia e dos Balcãs. Aquele que abraça a pele de lobo abandona a sua natureza humana, vivendo em uma sociedade própria, de onde retira sua força. Esta é a magia regida por Vaélico.

Obviamente, estamos falando de interpretações contemporâneas sobre os aspectos que poderiam ter abarcado o culto de Vaélico no passado. São suposições feitas a partir do que sabemos sobre Ele, sobre o folclore europeu sobre os lobos e sobre os guerreiros que “assumiam” aspectos lupinos. Não temos como confirmar tais afirmações, então elas acabam caindo na terminologia de UPG (Unverified Personal Gnosis, ou Gnose Pessoal Não-Verificada), ou talvez na de SPG (Shared Personal Gnosis, ou Gnose Pessoal Partilhada, quando uma crença é partilhada por diversos estudiosos e devotos de uma deidade, mesmo que sem confirmação acadêmica). Talvez alguns discordem de algumas delas, talvez outros descubram ainda outros aspectos relacionados a Vaélico. Mas estes são aqueles que tem se mostrado mais comuns para os devotos do Brasil e de outras partes do mundo.

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Uma opinião sobre “Vaélico, Semana 8: Aspectos e Variações

  1. ARTOKALOS

    nunca havia traçado um paralelo entre os inúmeros grupamentos que se vestiam com pele de lobo na antiguidade, a ligação disso e a lenda do lobisomem..

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