Arquivo do mês: janeiro 2024

Vaélico, Semana 9: Concepções Errôneas

É bastante difícil falar sobre possíveis erros de concepção sobre uma deidade com tamanha escassez de informação epigráfica e documental. Praticamente todo o nosso conhecimento sobre Vaélico é interpretativo, surgido a partir de evidências materiais e de possíveis correlações feitas com o que sabemos sobre os povos da Península Ibérica e de outras paragens. É possível incluir um aspecto vivencial para os pagãos atuais, mas este sempre será bastante subjetivo e pessoal, não podendo ser categorizado como elemento sólido de evidência (a não ser dentro da própria comunidade pagã, desde que confirmado por fontes diversas e, preferencialmente, não diretamente relacionadas). Assim, é possível que todas as nossas concepções estejam equivocadas, assim como é possível que todas estejam corretas. Contudo, é interessante que possamos conhecer alguns elementos sobre Vaélico que podem trazer alguma confusão aos interessados.

Começando por algo que já abordamos anteriormente, e que parece ser a concepção “errônea” mais comum sobre Ele. Aspas necessárias, pois embora tenhamos evidências de que tal crença possa ser um engano, não é possível confirmar totalmente que Vaélico e Endovélico não são a mesma deidade. Ambos eram deuses do Submundo cultuados por povos que partilhavam territórios (e deidades), para não citar a semelhança entre os nomes. Contudo, as diferenças terminam aí. Vaélico não parece partilhar das características oraculares e medicinais que são predominantes em Endovélico, enquanto o deus lusitano não parece partilhar das afinidades com a mineração que surgem com a divindade vetã. Além disso, a iconografia de Endovélico mostra uma relação clara com o javali, o que não ocorre com Vaélico. O nome de ambos pode ser derivado do proto-céltico *wailos, “lobo”, mas esta não é uma certeza no caso de Endovélico (cujo teónimo também já foi traduzido como “o Deus Muito Bom”), e a sua relação com o javali pode confirmar a diferença entre os deuses. Se a interpretação de que Vaélico era cultuado por confrarias guerreiras ibéricas for acertada, encontramos aí mais um ponto relevante de diferença. Além disso, Vetões e Lusitanos poderiam ser povos vizinhos que partilhavam muito de cultura e crenças, e que provavelmente se misturavam e confundiam (principalmente nas regiões fronteiriças), mas isso não quer dizer que fossem totalmente semelhantes. A crença preponderante é a de que a língua e a cultura lusitana não era céltica (mas talvez pára-céltica, absorvendo muitos elementos célticos de seus vizinhos Vetões e Galaicos), enquanto os Vetões parecem ter pertencido ao ramo hispano-céltico ocidental (como os Galaicos e Ástures). Assim, embora seja impossível afirmar com certeza absoluta, há elementos o suficiente para se acreditar que Vaélico e Endovélico eram divindades distintas.

O segundo erro de concepção envolve acreditar que Vaélico, por ser um deus ibérico, era conhecido por todos os povos ibéricos. As tribos ibéricas eram muitas e variadas, e embora existissem, sim, semelhanças entre elas, também havia diferenças enormes. Vaélico era um deus conhecido no território dos Vetões, não sendo atestado em outras regiões (para aqueles que acreditam que ele e Endovélico são a mesma deidade, esse território se estende para as terras dos Lusitanos, que não costumam ser considerados celtas pelos estudiosos). Então, se ele era cultuado em algum lugar, era em território vetão, e as chances de ser conhecido em outras áreas é remota. Aqui nos utilizamos de diversos elementos de partes distintas da Ibéria para tentar entender o simbolismo de Vaélico dentro do seu contexto cultural, mas sempre tomamos cuidado para não associá-los diretamente ao deus-lobo, mas apenas em supor o que tais objetos ou resquícios históricos podem significar quanto ao simbolismo lupino dentro da cultura ibérica, bem como o que eles poderiam significar no contexto de uma divindade lupina. Assim, não afirmamos que a Fíbula de Bragança é um objeto ligado a Vaélico, pois ela é de origem celtíbera, não vetã, mas traz uma interpretação ibérica sobre o simbolismo do lobo que talvez também tivesse algum significado correlato dentro das crenças sobre Vaélico. Da mesma forma, sabemos que os Vetões criavam confrarias guerreiras, como os Lusitanos e Galaicos, mas temos menos informações sobre as confrarias vetãs do que sobre as dos seus povos vizinhos, portanto toda a nossa a interpretação sobre o simbolismo lupino para tais bandos guerreiros parte das confrarias lusitanas e galaicas em direção a uma suposição de que esse mesmo simbolismo poderia ser relevante para os Vetões, que cultuavam um deus-lobo. Mas nada disso faz de Vaélico um deus pan-ibérico. Mesmo que outros povos ibéricos (talvez as suas confrarias guerreiras) se deslocassem ao seu território para lhe prestar culto (novamente, uma conjectura, não um fato comprovado), era em terras vetãs que isso ocorreria

O terceiro erro de concepção pode surgir através da ênfase que muitos dão à sua ligação com as confrarias guerreiras, o que pode fazer com que acreditem que apenas os membros de tais sociedades poderiam cultuar Vaélico (o que sequer podemos afirmar que faziam com certeza, apenas supomos que sim). O culto a Vaélico ocorria em santuários abertos e ermidas, e não parece ter sido em nenhum momento restrito a guerreiros. De fato, há uma quantidade de objetos de mineração ofertados a Ele, o que pode significar uma afinidade com tal atividade, bem como ser uma evidência de sua ligação ctônica ou com o Submundo (esta é uma associação comum a vários deuses que têm associações com a mineração, ou seja de buscar riquezas no mundo inferior). Além disso, há uma quantidade de aras votivas que parecem ter sido ofertadas por mulheres. Em um contexto contemporâneo, é comum a interpretação de que tais deidades poderiam auxiliar no caminho da busca das nossas qualidades interiores ocultas, “minerando” as profundezas do nosso ser em busca das riquezas que ali estão soterradas. Mas mais do que isso, mostra que Vaélico também poderia ser cultuado por pessoas que tinham ofícios não relacionados à guerra.

Obviamente, estou aqui falando sobre o meu próprio entendimento de Vaélico (além de minha prática e vivência espiritual). Apesar de meus pontos de partida surgirem de evidências arqueológicas, elas envolvem muita dedução, uma vez que nem todos os elementos estão diretamente conectados, apenas com um certo grau de parentesco que podem trazer alguma ideia de interpretação sobre Vaélico. Por isso, não falo sobre verdades absolutas aqui, mas do entendimento que me surgiu sobre como tais conceitos poderiam ou não se encaixar no culto do deus-lobo. Desta forma, é plenamente compreensível que alguns discordem dos aspectos apresentados.

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Vaélico, Semana 8: Aspectos e Variações

Acho que não é preciso explicar novamente que nosso conhecimento sobre as deidades ibéricas se deve mais à iconografia, arqueologia, interpretação de seus teónimos e elementos de culto do que a uma mitologia preservada (como encontramos nas terras célticas insulares). Não é tão simples encontrar os principais aspectos e variações associados a Vaélico, mesmo porque ele não conta com uma Interpretatio tão ampla feita pelos romanos como suas próprias deidades. Além disso, há o próprio caráter enigmático de suas aras votivas, que não são tão óbvias quanto as de Endovélico, por exemplo. Mas mesmo através da interpretação do seu teónimo e de suas possíveis relações com elementos conhecidos da antiga cultura da Ibéria (e de outros povos celtas), é possível inferir alguns possíveis aspectos de Vaélico. 

O primeiro aspecto que examinaremos é aquele trazido pelo seu próprio nome. Vaélico é “o Lupino”, o deus-lobo dos antigos Vetões. Portanto, ele é associado com os lobos, mas não apenas isso. Não há, nas variações mais arcaicas das línguas célticas, uma diferença clara entre lobos e cães, o que pode torná-lo associado aos canídeos em geral. Mais do que isso, como um deus lobo, ele certamente tem ligações com aspectos ligados à vida selvagem e natureza, inclusive com o seu lado mais terrível (que muitas vezes são ignorados por nossas lentes modernas). A natureza é bela, é livre, é intensa, mas também carrega perigos e terrores (como bem sugere a ligação do fíd do Ogham h-Úath, que significa literalmente “terror”, e que tem entre os significados atribuídos a ele no Briatharogam “matilha de lobos”), além da inevitabilidade da morte. E o lobo é um dos animais mais associados à morte no folclore europeu. Assim, é possível ver Vaélico como uma deidade ligada à vida selvagem, inclusive ao seu aspecto perigoso, da caçada e da morte.

Isso nos leva, obviamente, ao segundo aspecto: o de psicopompo. Encontramos evidências em alguns ramos da tradição céltica de que certos animais carnívoros eram vistos como psicopompos. Na Irlanda, havia a tradição de que as batalhas ocorressem em dias alternados para que os corvos pudessem se alimentar dos mortos (talvez um reflexo da crença na deusa Morrighan). Na Ibéria, encontramos o relato romano que dizia que os corpos dos guerreiros caídos eram deixados no campo de batalha para que as aves carniceiras deles se alimentassem e os levassem ao paraíso. O lobo, especialmente, era visto como um ser que não pertencia totalmente a esse mundo, mas tendo um caráter quase sobrenatural, vindo dos limiares entre os mundos. Além disso, os relatos de guerreiros que vestiam as peles de lobos na Ibéria, Escandinávia e Leste Europeu como parte de processos iniciáticos e ritualísticos reforçam o seu caráter sobrenatural. Vaélico é um deus do Submundo, um deus noturno das fronteiras onde o mundo humano termina. Por isso, é natural que ele seja visto como um psicopompo, bem como um guia para aqueles que seguem os seus caminhos.

Essa ligação dos lobos com guerreiros do mundo antigo, da Ibéria até o Leste Europeu, passando pela Escandinávia, nos traz um terceiro aspecto de Vaélico: o de iniciador dos guerreiros. Mas não de simplesmente soldados, mas de grupos de guerreiros que “vestiam a pele do lobo”, encarnando sua ferocidade e terror, muitas vezes através de ritos iniciáticos e extáticos onde apenas os mais aptos passavam a ser escolhidos a andar com suas “matilhas”. Os Ulfhednar nórdicos, as descrições da Volsunga Saga, os guerreiros-lobos dos Balcãs e as confrarias ibéricas, que cercavam os romanos à noite e uivavam como lobos, todos pareciam partilhar dessa ligação lupina. Obviamente, não estamos sugerindo que todas as confrarias ibéricas eram formadas por devotos de Vaélico, mas não parece inapropriado sugerir que aquelas que passavam pelo território vetão tivessem alguma relação com uma deidade lupina.

Essa ligação com guerreiros que “vestem a pele do lobo”, que podem ter trazido à tona tantas lendas sobre lobisomens na Europa, nos sugere mais um aspecto que pode ser relacionado a Vaélico, o último que analisaremos aqui: o de ser uma deidade ligada à magia, particularmente a de transformação. Como citado, tais muitas vezes guerreiros não eram apenas soldados, mas um grupo seleto de homens que viviam sob suas próprias regras, praticando seus próprios ritos, como uma casta à parte da sociedade. Eles eram conhecidos por “incorporar” as características lupinas, viajando em bandos, vivendo com astúcia e ferocidade. Essa suposta ligação de Vaélico com a magia, portanto, não envolvia simplesmente a prática mágica no geral, mas especificamente a prática mágica do guerreiro, de “buscar a transformação” de si mesmo em lobo, para se tornar mais completo, como visto nas confrarias da Ibéria, da Escandinávia e dos Balcãs. Aquele que abraça a pele de lobo abandona a sua natureza humana, vivendo em uma sociedade própria, de onde retira sua força. Esta é a magia regida por Vaélico.

Obviamente, estamos falando de interpretações contemporâneas sobre os aspectos que poderiam ter abarcado o culto de Vaélico no passado. São suposições feitas a partir do que sabemos sobre Ele, sobre o folclore europeu sobre os lobos e sobre os guerreiros que “assumiam” aspectos lupinos. Não temos como confirmar tais afirmações, então elas acabam caindo na terminologia de UPG (Unverified Personal Gnosis, ou Gnose Pessoal Não-Verificada), ou talvez na de SPG (Shared Personal Gnosis, ou Gnose Pessoal Partilhada, quando uma crença é partilhada por diversos estudiosos e devotos de uma deidade, mesmo que sem confirmação acadêmica). Talvez alguns discordem de algumas delas, talvez outros descubram ainda outros aspectos relacionados a Vaélico. Mas estes são aqueles que tem se mostrado mais comuns para os devotos do Brasil e de outras partes do mundo.

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